O
palco fez você gigante. Gigante aos meus olhos. Planetário em que
te vi, sorriso largo seguindo a traquinagem da personagem. Olhos
verdes fazendo o mapa. Três dedos abaixo é uma coordenada imprecisa
pro tesouro posto na carne da tua boca. Quis ali mergulhar a minha.
Buscar tua língua no sussurro de olhos fechados. Emergir. Teus olhos
verdes desfocados na proximidade das almas. A minha
mão perdida no teu emaranhado de fios. E que se danem os mapas.
Geografia do toque. Mas teus olhos verdes feito ímãs. Eu que sempre
tive tropeço pelo que me pusesse ébria. Sobriedade
em
excesso sufoca a vida.
Olhos
verdes.. Olhos
verdes tão ingênuos, olhos verdes tão ingênuos quanto os de
Capitu.
Paixão cega. Mas a ingenuidade faz o que? Os deixa lúcidos? Mais ou
menos dispostos ao mundo? Vulneráveis à crueza das coisas.
Suscetíveis, porém, a beber da rudeza dessa cidade cão. E não é
uma forma mais honesta de existir? Será
que pra
ser honesto é preciso doer? Ou doer é mera questão de ego
desorganizado? Em algum momento da madrugada você disse da
necessidade emergente de ser âncora sobre um um outro. Chamou de
apego. E naquele momento eu não entendi a profundidade da confissão.
Tão sutil que ela fora pra descortinar tua inexperiência. O teu
ainda não saber da entrega. Do delírio de se perder na confusão
com outro corpo.
De se deixar devorar. E ficar. Permitir
ser amada. O desarme. Esquecimento momentâneo da máscara. Logo você
que fez do palco destino. Desconhecer a entrega. A visceralidade de
se abandonar. Deixar
o estouro da arrebentação te cobrir. O mar sendo cenário de um
amor que faz chamada das profundezas. Faz a matéria densa dos corpos
flutuar em
superfície
salgada. As conchas indo e voltando no fluxo. Animais se refugiando
nos desenhos mutáveis que modelam a areia. Submersa. E os corpos
flutuando. As mãos estendidas enquanto calmaria. Os dedos encaixados
nas
marolas que
assumem
o movimento do coração. E a ele dão ritmo. E logo em seguida
mandam a calma à merda. As águas se agitam. Equilíbrio rompido.
Força que castiga. E os amantes vão estourar na rebentação. Ou
afogar momentaneamente. Há amor que se prove na tempestade? O gosto
continua salgado. É preciso coragem pra que se resgate o que foi
longe ou afundou. É preciso coragem pra se deixar resgatar também.
E tudo isso só me veio à
mente depois que a porta se fechou. E o Sol já ardia alto lá em
cima..
A
tua despedida seca me pôs remorso.
De ter
me contido na superfície. De
ter preenchido automaticamente as lacunas que nos separavam em idade.
Detestáveis autoridades engatilhadas. Peço mentalmente desculpas.
Egoísticamente, as direciono a mim. Que abreviei o recorte daquele
agora. E acelerei os
passos da tua
fala.
E
me mantive armada. E
não fui honesta como havia prometido ser. Da janela víamos o mar. E
eu não pude te deixar ver o meu. Tanta tinta dentro. O fiapo solto
da tua roupa. Tudo isso me põe certa tristeza nos olhos. Tão
distantes em ideia dos teus. E a confissão que não explorei. O
fiapo que,
disposto à paciência, poderia
ter se
alongado
até
desnudar
teu corpo farto.
Ter
te extraído
mais confissões. Ter me reconhecido nelas. Ter
respondido a sua ânsia de ser âncora. Se apegue a mim, eu te digo
aqui do outro lado do mundo, mas me deixe ir. Pra que eu possa achar
meu próprio caminho de volta – é que eu também não aprendi
ainda a ficar.
Descontinuidades
terça-feira, 8 de novembro de 2016
terça-feira, 25 de outubro de 2016
Multidão de bichinhos ao redor das lâmpadas anuncia a chuva que se aprochega. Talvez a memória falhe em precisar o passado - a impressão é que essa entrada furtiva pelas frestas das janelas costumava se dar em agosto. Não importa. Que seja agora em outubro beirando novembro. Chuva traz cheiro de grama molhada e madrugadas pra gente atravessar desperto. Sem cobertor a cortar o toque. Veludo da noite que encobre jabuticabeira farta no quintal. Costumavam ser muitas. Pequenina aos oito, aos meus olhos, enormes eram os galhos tortos pontuados com bolinhas pretas. Intercaladas por inúmeras flores ainda na promessa de virar fruto. Conto nos dedos às vezes que levei jabuticabas à boca. O barato era outro. Gostava mesmo era de escalar árvore frágil em descasques – jabuticabeira tem cútis frágil. Pé descalço dava jeito de equilíbrio enquanto as mãos gordinhas iam testando a mira: de cima pra baixo, o alvo era encher bacia depois de curtir o visu lá de cima. Empreitada colaboradora pra coleção de arranhões nas pernas e mais uns furos trocados nas roupas sujas de barro. Sujeira aclimatada nem botava bronca na orelha mais.
Naquela época, condomínio de família não era dividido e nem tinha esse distanciamento todo entre vizinhos. A casa de agora era gramadão cheio de formigueiro e buraco, mas palco principal pro futebol marcado da tarde. Muro foi invenção tardia. Propriedade fazia limite era com cerca costurada em arame frouxo. Vai e vem de todo dia já tinha passagem favorita. A gente se esticava magricela pra passar sem ficar pedaço na ponta dos espetados de ferro. Nem sempre dava certo: aí se adicionava mais um buraco na blusa ou outro arranhado no corpo. Entardecer só anunciava ordem de banho. Na disputa civilizada, tirava zerinho ou um com os dois mais novos - método democrático pra decidir quem deixaria de brincar primeiro. Argumento de autoridade não valia pra ficar por último.
Naquele relógio de poucos compromissos, a gente não precisava marcar para ter encontro com afeto. Via minhas primas todos os dias. O resto da trupe descia pra solado de aviões nos finais de semana. Beth. Polícia e ladrão. Pique e esconde. Billy ainda tinha vida nas nossas aventuras: aquele mastin napolitano enorme e babão ajudava a entregar esconderijos.
Anne, Victor e Iago gostavam de antecipar o descarrego da mangueira: catavam manga verde e temperavam com sal. Eu já achava um saco ter que tirar fiapo dos dentes. Nas rixas eventuais, porém, tanto fazia a maturação da fruta: madura ou não, virava instrumento de poder. Uma vez Anne mirou no cuco do Victor. Bateu em cheio. Deve ter doído um dia e meio. Bandeira branca sempre vinha. Sinal de paz era chamar Seu Airton pra cortar a cana que nascia na divisa dos terrenos. Ficava aquele bando de peste sentada na escada com o rosto lambuzado e o bagaço espalhado ao redor. Quase um ritual pra pôr quietude – chupar cana exigia pausa e concentração.
Foco nunca foi meu forte. E eu falava antes de bichinhos que se aglomeram ao redor das lâmpadas. Entradas furtivas com promessa de chuva. Mensageiros de jabuticabeira cheia e madrugadas frescas. Veludo da noite mais paciente para com insônias. Memória imprecisa. Multidão de bichinhos a furtar passagens. Pela tela. Pela janela. Convite pra ver além dos quadrados. Pôr pé de novo na terra. Sujar a roupa de barro. Subir na jabuticabeira. Curtir o visu. Encher bacia de jabuticaba. Antes tarde do que nunca.
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
Agosto.
Em diversos momentos,
achei que já havia
arrumado razoavelmente a casa: despendurado as fotos, devolvido suas
roupas, retirado alguns post-its lembretes
anti-esbarros dos móveis-
você sempre foi uma catástrofe em evitar colisões. Colisões
essas a te desarmar no meu colo; teus olhos emburrados a ver minha
risada preencher o cômodo; teus olhos logo
a desposar a calma enquanto meus lábios
descansavam em tua pele.
Paz foi rainha durante os ponteiros que nos coincidiram, ainda que em
direções, por vezes, opostas. Assistimos, daquele
rotineiro segundo andar, por detrás das tuas
janelas, os ciclos lunares. Lilith também fez-se presente em nossas
visões- não ocupando lugar nos céus, não
haveríamos de escapar dos tempos estéreis:
abençoou-nos, à sua maneira, a lua negra.
A primavera, conosco, porém, foi generosa: se no
plantio fomos áries, espalhando sementes por todos os cantos em que
nossos corpos com amor tocaram, na colheita fomos câncer
em plenitude – montamos nossa casa de flores:
girassóis a nos lembrar permanentemente onde nasce e morre o Sol.
Frutos, filhos: quantas
são as memórias que agora cuido sem, em coração, ter desejado ser
mãe. Talvez tenha quisto e não sei; o saber
exige reconhecer as coisas como elas são – desabrigar-se da
caverna cobra, em passaporte, a transcendência
das dores, da ausência, do escuro. Remexo as
gavetas em vão; sei, de antemão, que ali descansam apenas minhas
bagunças – jamais fui capaz de deixar a coragem nesse redemoinho.
Respaldo a postura na beirada da cama: chove, agora, lá fora.
Imagino as cachorras deleitando-se em barro e o humor ausente que
brotará, mais tarde, em minha mãe. Esboço um princípio de sorriso
no canto da boca: gosto de chuva. Terra molhada, vida que respira e
renasce. Fecho os olhos. É isso, então. Mais um dos inomináveis
ciclos do universo – eu e você atomizadas em despedida, em nossa
retomada de caminhos distintos. Estranho
é ter que despir esta roupa
usada religiosamente por tanto tempo -
resquício de uma fidelidade intensa a ponto de
se fundir na pele. Capa adida às minhas curvas
confusas, tão doce às arestas da minha auto-cobrança.
Boom. Já pronunciamos tantos adeus e a deus já entregamos nossas rezas e nossa cura. Agosto mostra sua face: desgostoso de clichês doces, tem cobrado o seu pedágio compulsoriamente - e dolorosamente impulsiona a descolagem de seus últimos (e ainda tantos) pedaços firmes em mim. Questiono a pressa e ele responde: morrer para renascer, filha; a terra precisa germinar.
Boom. Já pronunciamos tantos adeus e a deus já entregamos nossas rezas e nossa cura. Agosto mostra sua face: desgostoso de clichês doces, tem cobrado o seu pedágio compulsoriamente - e dolorosamente impulsiona a descolagem de seus últimos (e ainda tantos) pedaços firmes em mim. Questiono a pressa e ele responde: morrer para renascer, filha; a terra precisa germinar.
quinta-feira, 25 de junho de 2015
Labirinto.
Fecho os olhos. A grama sob os pés
descalços se acomoda sem cócegas. A calça dobrada. Moletom de
domingos. Inspiro. Tem um sol de quatro da tarde a fazer sombra no
corpo. Desperto o olhar. Sempre achei curioso o jeito com que a luz
deixa a íris mais clara, como se pudesse desvendar nesse toque todos
os segredos que a boca não conta. Meio sorriso- deflagro. É como se
o invisível me pusesse o rosto nas mãos e me beijasse o queixo.
Desejo. Bochechas coram com a leveza da ideia. Perspectivas alheias
julgar-me-iam fora de lugar: a menina dos pés desnudados que sorri
para vazios. Mal sabem elas do meu peito cheio, dos sons
ininterruptos na cabeça. A subversividade me aquece: esboço a
travessura nos olhos que retomam o tom mais escuro ao se cerrarem
junto à guinada do canto dos lábios. Orações desconexas. É que
nesse momento te penso e tudo muda – a calma se despede. Postura
enrijece, joelhos quase dobrados, costas arqueadas. Dizer-te que me
armo seria exagero; mentiria, contudo, se declarasse que não me
preparo. Guerra. Guerra no arquétipo da terra árida: solo duro de
onde tantas paredes emergem; esboço pretensioso de desenho múltiplo
de um cenário, ainda, confuso. Oito segundos. O imaginário então
me situa no teu amor pelo jogo: labirinto.
Claustrofobia, confirmo. Corpo pronto
para correr. Corredor extenso.Minha imagem, de repente, refletida no
espelho - espelho abraçado pelas folhagens secas que cobriam os
muros. Antes fosse primavera a vestir inícios, pensei. E a minha
imagem ali a esperar algum outro raciocínio que não a predileção
do coração. Chacoalho a cabeça. Aproximo-me. A miopia sempre
arrogante a subestimar os caminhos descrentes do óbvio. Você ali,
de pé, em segundo plano. Olho para trás – não há nada a buscar
no antes. Apenas aqui, você recita. Sucinta, nunca fostes de poesias
declaradas, eu sei. Sem entender, observo. Observo seus ombros
rígidos, seu olhar estático. O que há por detrás das cortinas,
indago. É medo? Silêncio. Quem cala consente e, então, eu sei.
Entendo. Leoa, não vou te cantar em Caetano porque já é batido,
porque pequeno. Estalo. Duas covinhas tímidas se principiam no
contorno macio do teu rosto e me olhas dizendo: desarme-me. E
amoleço- Marte é, aqui, traído. E estico o braço como se minha
mão pudesse atravessar a superfície lisa do reflexo, como se o
instante da vontade pudesse te alcançar. Tão tola. No momento em
que a minha identidade marca a prata, você se afasta num riso
contido. Segundos e entendo o motivo. Teu olhar petulante entrega o
início: que comecem os jogos. Fome.
terça-feira, 7 de abril de 2015
Vênus.
O machado ia e voltava cada vez mais agressivo com a madeira
que, tão desesperadamente, buscava dilacerar. O que lhe impulsionava não era
novo tampouco fruto de algo divino ou invisível. Ia e voltava, maculado de
seiva e de lascas – pele rachada que, aos poucos, terminava de romper. Uma,
duas, três, quatro. Sessenta repetições furiosas, contei. Três minutos. Uma
eternidade para quem amortece os golpes. Eufemismo – que ego quer ser
danificado? Me perdoem os sádicos; talvez, agora, não queira incluí-los como
sujeitos. Vocês tão objeto de si mesmos. Já os braços que conduzem a lâmina,
presentes muito além das próprias orações. Sujeitos, sempre primeiros, ainda
que deslocados. Que pés beijam os holofotes? A imaginação se adianta e pinta um
rosto duro empapado de suor. Talvez uma barba volumosa a quadrar o queixo.
Talvez olhos frios e secos- resposta metódica e calculista dum fazer virginiano
adornado por Plutão. Sedento pelo marejar das janelas d’alma – escorpiano no
desejo da dor.
Poderíamos ser música não fosse a cena tão desprovida de
compaixão. Sequer ventava. O céu aberto a questionar um lenhador de ocasião.
Ainda que fosse fantasia e pudesse aquele tronco envergado falar, emudecia
perante a compulsão alheia. Só Deus sabe o custo desse silêncio, a autotortura,
contemporânea e posterior, por se deixar, resignadamente, machucar. Há, então,
o esbarro proposital do olhar. Ditado já anunciava que, quanto mais perto dos
olhos, maior a estaca no coração. E eu te vi. Te despi. Te tirei do masculino –
nem todo o arquétipo do bélico justificava o ritmo que a lâmina principiava em
suas mãos para, então, ganhar forma na minha carne. Nua. A pele tua que
reverberava a cada golpe; não tinha esta a firmeza plástica da idade – de estático
e firme só o teu propósito. Tua violência me consumia. Você seios e sexo numa
dança fatigante de ir e voltar. Ir e voltar. Ir e voltar até o esgotamento do
todo. Ir e voltar para, então, abandonar. Abandono. Palavra ogra. Tão distante
do nosso momento. Vênus abraçada a marte, carne e osso costurados ao bélico. O
vermelho meu a te cobrir: sangue.
Quisera eu fosse um quadro renascentista; roubar a etimologia da palavra
e nos inscrever num momento destrutivo tão somente para, depois, nos rabiscar
em fênix. Renascer. Pena deslaçada de tinta é só pena, porém. Quisera eu que o
vermelho fosse bandeira, tal qual Delacroix eterniza numa caminhada branca
sobre as mortes filhas da Revolução. Liberdade, Igualdade, Fraternidade – seria
o lema perfeito se tivesse sido o nosso amor liberal. Ou se tivesse sido algo
além dum fronte continuum de guerra:
corpo meu de escudo do teu.
A verdade é que, fôssemos arte, seríamos parcialmente dadaísmo – destruição sem qualquer intenção de trazer o novo, de romper a bolha do já posto, dos clichês. Quebramos as pernas. Eu ali enraizada pelos joelhos a esperar o esgotamento do teu ritual de despedida. Extenso. Há quanto tempo estávamos assim? Quase um monólogo tão fixas as posições – logo você, odiosa de águas (paradas). Tuas mãos brancas possessivas do machado; as minhas, veias saltadas, sujeitas à permanência inescapável: câncer. Luta de custos inefáveis, a língua paga o preço da resistência em proferir adeus. Mas, a Deus, confesso, gritava. Pai, por quê? Por que me quis e a quis assim? Talvez eu desista de ser memória. E nossos olhos se sustentavam ainda. E, em algum momento, deixei-os subir. Que escape o sentir. Afogar. A rotina do ferir também se esgota – ontologicamente, até o doer precisa fazer-se face para, então, existir. Não há nada tão insuportável quanto não significar.
Um último momento para te observar. Vênus
vestida em Áries a desfiar tão incisiva e descautelosamente o meu peito. Nem
tuas iniciais, assim, conseguiria deixar ali. A lembrança de uma confusão sem
nome. O teu eu tão nu, tão vulnerável às minhas leituras; juro-te que nelas não
pus piedade alguma – piedade não é amor.
A verdade é que, fôssemos arte, seríamos parcialmente dadaísmo – destruição sem qualquer intenção de trazer o novo, de romper a bolha do já posto, dos clichês. Quebramos as pernas. Eu ali enraizada pelos joelhos a esperar o esgotamento do teu ritual de despedida. Extenso. Há quanto tempo estávamos assim? Quase um monólogo tão fixas as posições – logo você, odiosa de águas (paradas). Tuas mãos brancas possessivas do machado; as minhas, veias saltadas, sujeitas à permanência inescapável: câncer. Luta de custos inefáveis, a língua paga o preço da resistência em proferir adeus. Mas, a Deus, confesso, gritava. Pai, por quê? Por que me quis e a quis assim? Talvez eu desista de ser memória. E nossos olhos se sustentavam ainda. E, em algum momento, deixei-os subir. Que escape o sentir. Afogar. A rotina do ferir também se esgota – ontologicamente, até o doer precisa fazer-se face para, então, existir. Não há nada tão insuportável quanto não significar.
terça-feira, 7 de outubro de 2014
Couraça.
A década de concepção de nossos corpos é a mesma -
estouramos a placenta nos anos noventa. Há entre um choro e outro, porém,
diferenças. Cinco anos. Memórias. Cidades. O nível de poluição atmosférica, a
umidade do ar. Brasília estava quente e seca, já as condições de saúde e humor
do triângulo mineiro me fogem à ideia.
Quaisquer que sejam os desígnios do Universo, 97 e 92
somam-se em 14. A conta não bate por óbvio - é que a matemática se esquece de
que há muitos encontros no irracional, justamente por ser este (quase-oposto)
imprescindível de coração.
Um mais um é igual a dois e quem disse que a soma soma e que
meia dúzia são seis? Significante e significado nada são além de ilusões
convencionadas, assim como as demais representações numéricas em que tentamos,
hora ou outra, nos resumir.
Então suponhamos que a racionalidade do cálculo e suas crias
sejam aceitas como tinta para nos traduzir. São dez meses. O que corresponde a
sete mil e duzentas horas ou, caso prefira, quatrocentos e trinta e dois mil
minutos. A estes se adicionam todas as estações - vi o ipê colorir e desbotar.
Já briguei, me despedi, me reconciliei e acolhi o infinito tantas vezes e disso
nem precisava falar, você sabe bem.
Dez meses é tempo para ‘dedéu’ e nessa conta não cabe tudo
que nos aconteceu; as subidas encurvadas na escada, as chinelas despedaçadas
por nossos amores peludos, as gordices inimigas de dietas eternas, os domingos
de aconchego, a saudade constante do litoral. Enumerar cada dia é correr o
risco de esquecer algum detalhe seu – melhor deixar a memória reconstituir a
tudo em silêncio.
Eu gostaria que a unidade de tudo fosse o amor; que fosse
ele o ponto de início e os pontos reticentes da continuidade ilimitada de
qualquer leitura que pretendesse dizer a vida. Isso porque, como eu dizia, a
matemática é norma e por assim o ser é ficção e não pode a ficção querer
definir o real, o que se concretiza em carne e osso e que dá ritmo à couraça do
peito. A matemática, pobre coitada, não nos capta, não nos esgota - não nos traduz.
Dez meses não têm braços suficientes para acolher tudo o que fomos, tampouco
consegue envolver todo esse sentimento expansivo que aponta no que poderíamos
amanhecer. As conexões que perpassam a nossa caminhada vão muito além do lapso
temporal que a veste - foram poucos aniversários para tantas pontes entregues
ao oceano.
Tempo desses, antes de você banhar cada olhar meu em onda,
eu fazia essa reza diária de uma menina dos olhos de mar vestida de pôr do sol.
Um rosário literário, confesso. Uma imagem poética destinada ao fantasma do
acaso. Os passos circulavam em penhascos, como se a concretização só fosse
possível após a tormenta - como se não pudesse haver calmaria sem tempestade. A
mitologia fruto do medo, porém, se desfez. E estas últimas linhas se inscrevem em
despedida nos teus traços guardados na confusão dos desenhos desalinhados das
minhas mãos.
Paz...mulher dos cabelos negros, fala mansa, molejo doce
feito as primeiras marolas que beijam a areia. Havia tanta beleza no que, com
sorrisos e lábios, você me mostrou e beijou até entardecemos juntas. O gosto de
(c)alma ensinado à boca. Eu sempre precavida dos percalços do tempo até
adiantava o relógio para controlar o logo mais, como se pudesse enganar os
motores daquele. Nesse recorte de minutos imaginados, a Lua ofereceu suas
fases, os cachorros trocaram a pelagem e eu pude mergulhar e roubar um
pouquinho de cada esquina do seu corpo – incontáveis dias brancos, de muito
canto, de muito amor.
No fim, atualizei os ponteiros, para que pudéssemos amanhecer
– o Sol precisava sair.
Nas sombras que se formam, há o pequenino relevo da ausência; contorno fresco a pontuar sua dor. Eu sei. Eu sei de tudo isso, não precisa me dizer. As horas vão te recordar na mesma medida que tentarão te esquecer. E eu contava antes que a unidade de tudo deveria ser o amor, mas a pena confirma o que o pesar reconhece: a unidade absoluta é o tempo.
Nas sombras que se formam, há o pequenino relevo da ausência; contorno fresco a pontuar sua dor. Eu sei. Eu sei de tudo isso, não precisa me dizer. As horas vão te recordar na mesma medida que tentarão te esquecer. E eu contava antes que a unidade de tudo deveria ser o amor, mas a pena confirma o que o pesar reconhece: a unidade absoluta é o tempo.
terça-feira, 12 de agosto de 2014
Ponteiros.
Os nossos relógios de pulso e de bolso se degladiam. O seu, em marcação, sempre o senhor pontual. O meu, assumidamente, adiantado em ponteiro e atrasado no efeito do corpo. Ambos se confrontam na implicância dividida entre ser exato e se permitir não ter tanto compromisso com a hora que, inevitavelmente, chegará. E essa briga expira alguns atritos; vez em nunca vem um tom diferente acompanhando a leitura do visor. Eu digo cinco e quinze, você retorna com "dez pras cinco". A lacuna é de vinte minutos ou, mais detalhadamente, mil e duzentos segundos. É tic e tac à vera, eu sei. São duas dezenas em torno do ponto 12; dá pra passear com os cachorros, pedalar até a sete e voltar, visitar a amiga vizinha -o uso é discricionário, pode-se fazer tanto como pode-se fazer nada. Há algo a mais, porém, na diferença das nossas pronúncias temporais do que a disposição de vontades ocupacionais nesse pedaço de espaço invisível. A pontualidade, intencionalmente, vive o presente e não quer perdê-lo em parte ou jeito algum. Não importa, para essa dama de espadas, empunhaduras perdidas na ação - é preciso que o corte esteja continuamente desfilando seu desenho, independente de resultados passados. O (b)ônus de se ler o tempo para frente, por sua vez, assume perspectiva complementar, já que de muitas maneiras não se quer -e nem poderia ser- oposto.
É como se, nesse dizer pretensioso de previsão, ele pudesse ter controle do que logo virá a acontecer - como se, ao ditar a falta de coincidência entre os ponteiros, pudesse projetar quereres atuais em futuros iminentes. Assim, enquanto você ainda encontra o dez pra cinco, eu, ilusionista, discurso para os cinco e quinze com a esperança de pintar nele o meu próprio desejo de logo mais. E tudo isso é muito bobo, eu sei. Isso de te arquear as sobrancelhas e fazer teus pés baterem o chão a troco dessa minha mania de tentar influenciar o incontrolável - incontrolável e impiedoso, sei bem que o tempo hora e outra nos fará inconsoláveis, obedecendo apenas à desídia de seu próprio gênio. Todo sistema, porém, é contornável. Insisto, portanto, na brecha à espreita: por esta eu te peço a paciência do suportar. Te cedo, então, impropriamente, a verdade sobre as horas: nunca foram muito minhas para que pudesse, de alguma forma, ditá-las. Elas, em verdade, sempre foram e serão tuas; agarradas ao presente e ao cabo das espadas. O adianto, por sua vez, continuará: é justamente na reverência à paz fundada pelo teu presente, pontual, que ele justifica a tentativa de controle do futuro imediato. Tudo feito para projetar a tua presença na permanência incontestável dum tempo que, inexoravelmente, já já vai chegar - quem sabe nele você possa sempre estar.
É como se, nesse dizer pretensioso de previsão, ele pudesse ter controle do que logo virá a acontecer - como se, ao ditar a falta de coincidência entre os ponteiros, pudesse projetar quereres atuais em futuros iminentes. Assim, enquanto você ainda encontra o dez pra cinco, eu, ilusionista, discurso para os cinco e quinze com a esperança de pintar nele o meu próprio desejo de logo mais. E tudo isso é muito bobo, eu sei. Isso de te arquear as sobrancelhas e fazer teus pés baterem o chão a troco dessa minha mania de tentar influenciar o incontrolável - incontrolável e impiedoso, sei bem que o tempo hora e outra nos fará inconsoláveis, obedecendo apenas à desídia de seu próprio gênio. Todo sistema, porém, é contornável. Insisto, portanto, na brecha à espreita: por esta eu te peço a paciência do suportar. Te cedo, então, impropriamente, a verdade sobre as horas: nunca foram muito minhas para que pudesse, de alguma forma, ditá-las. Elas, em verdade, sempre foram e serão tuas; agarradas ao presente e ao cabo das espadas. O adianto, por sua vez, continuará: é justamente na reverência à paz fundada pelo teu presente, pontual, que ele justifica a tentativa de controle do futuro imediato. Tudo feito para projetar a tua presença na permanência incontestável dum tempo que, inexoravelmente, já já vai chegar - quem sabe nele você possa sempre estar.
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